29 de abr. de 2018


Sobre a viagem II

Hoje saindo na varanda senti o ar pela primeira vez mais frio que o do quarto. A amplidão do terreno ao lado, vazio de construções e cheio de um mato inidentificável, nessa quantidade grande de metros, lembraram a sensação do sereno caindo na pele em algumas noites durante esses 68 dias. Naquele momento não havia ar frio, só uma brisa cortando as bochechas como sopro de respiração de mãe amamentando. O mundo, esse gigante redondo onde colamos por gravidade, dava seu tom de berço. Era possível, abrindo os braços com o queixo apontando o alto, perceber a atmosfera ao redor, de olhos fechados.
Claro, a vibração de se compreender parte de um todo saía pelos poros graças ao tipo de vivência que era experimentada. Nenhum elo com compromisso de proletariado, a única marcação de ponto era a que tachava o estômago e o instinto auto protetor: quando comer, onde dormir... As necessidades eram de fato básicas e a vontade de estar ali, realizando essa empreitada sanava qualquer desejo secundário. De repente o desejo de encontrar o look da night de sábado foi substituído por longas linhas emaranhadas de estrelas brilhantes, vez em quase sempre uma cadente, a fome por um novo romance substituída por um escalda pés de água morna, salgada e massagista, trazida e levada nas espumas frescas. Toda vontade fútil, funcional ou não, era arrebatada por uma sensação de completude, um sentido oposto ao que nos regam as telas eletrônicas ou qualquer dispositivo com objetivo marqueteiro.
Essas noites em que o ouvido estava chafurdado nos sons do atlântico eram as mais recompensadoras. Geralmente vinham depois de uma batalha travada no equilíbrio das rodas sustentando o peso dos itens exagerados carregados e o do meu corpo que já dava sinais de alguma diferença, embora não fosse religiosa ortodoxa, muito mais para o paradoxal estava, a frequência do exercício e brindavam um quê de troféu sem competição excludente. Quando se alcançava o destino, tendo ele sido pré-estabelecido ou pós, chegava a recompensa: uma areia livre de humanos barulhentos, um reflexo prata no líquido bravio imenso e essa brisa de mãe Terra cortando os músculos labutados. Hoje saindo na varanda também lembrei da saudade que senti naquelas noites desse ar frio aqui de fora. Todo o mundo é diferente do quarto.

Carola Bitencourt
29/04/2018

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