4 de abr. de 2019


Sempre vejo a nata. Tipo uma coalhada que se separa do resto de leite, que se difere daquele soro aguado que sobra depois que a nata se forma. Essa nata tá inteira, concisa e apegada. Se mantém distante do soro, da cuia que a contem, detida da força de ser nata, de escolher com o que se mistura: outra nata somente.

Ela é apreciada por um tanto de gente, pagando bem, que mal tem?

Não à toa é curadoria, ops, curada. Cuidado pra não errar o nome, essa nata se desmancha facilmente se não for tratada delicadamente, se sentir que está sob qualquer análise se desfaz num tempo recorde e sai desvairada escorrendo pelos seus dedos.

Nata curada não perdoa, se tu não está na mesma consistência, nada adianta ter consciência, a nata te mata.

Se teu trabalho não for branco neve n° two one two não tem chance.

Se te dobras aos gracejos, tá dentro do empolamento desejado e sua alvura pode ser incluída.

Vai cuidando de ter bastante saliva, tua arte vai ser julgada pela lábia e lambida centimetral que tu der nas bolas claras e lisas, nos sentimentos apalpados no ego da cura. Daria um balde de vaca pra entrar no páreo? Então pode seguir seu sonho de ser artista reconhecido.

Mas, lembre-se: a nata só aceita se vc participar do jantar com discurso astronáutico, originalidade só se vier com bibliografia estilo escala pantone, pensamentos humanitários que não toquem no capitalismo e tem que ser progressista, porque a nata é muito altruísta, afinal pra uma precisa apropriação cultural é necessário ser bem vindo ao círculo em que o material/pessoal de estudo está.

Vão te dizer que o mundo tá muito careta se tu faltar, mas no primeiro respingo fora do penico, se tu não lambeu o suficiente o chão, aí, se prepara. Vem de colher larga seu catapultamento ao esquecimento.

Se tu decidir que não tá afim de ser nata, dá uma pesquisada nas alternativas marginais (nesse termo também deram uma gourmetizada, mas quem é marginal sabe que não tem passada de pano de 1000 fios egípcio que cubra o rasgo real da perifa).

Ainda tem um monte de safras vegetais ou derivadas de sangue que nos salvam e continuarão a salvar o que chamamos de arte.

Há esperança, mesmo que a nata ainda não tenha coalhado e apodrecido, continuamos a tirar leite de pedra na labuta de mudar os rumos e a forma como o mundo é feito. Escolha seu veneno.


Carola Bitencourt
04/04/19